terça-feira, 18 de março de 2008

In/Fidelidades...

- Para o comum dos mortais - disse Capablanca - a fidelidade resume-se ao uso exclusivo, reciprocamente exclusivo, do corpo de outra pessoa, mas nunca pensei nem senti assim. Porque devemos amar uma única pessoa ? Porque pretender gozar o outro em regime de exclusividade ? Não me parece que o amor ou a moral devam estar ligados a uma coisa tão trivial. Para mim, a verdade é um valor muito superior àquilo a que, vulgarmente, se chama fidelidade. O amor, tal como o entendo, será menos traído por outro amor do que pela mentira. Outros pensarão ou sentirão o contrário, mas é minha convicção que o amor infiel não é o amor livre, mas sim o amor negligente, o amor renegado, o amor que detesta o que amou, que, no fundo, se detesta a si próprio.

...

A fidelidade significa, acima de tudo, ser fiável e digno de confiança e ela era ambas as coisas para mim. Mas uma pessoa não deve apoiar-se única e totalmente noutra, isso seria a morte.

...

- E como combatias os ciúmes?
- Os ciúmes da maturidade são muito diferentes dos juvenis, oprimem menos e combatem-se melhor. Ao fim e a ao cabo - continuava Capablanca - os ciúmes, acho eu, são mais um produto, talvez o mais doloroso, da nossa própria insegurança. E, quando não há suspeitas, perseguem-nos menos, mas também não desaparecem, porque subsiste a certeza do que o outro existe.
A princípio, quando Isabel, minha querida mulher,  viajava ou, simplesmente, saía, aqui mesmo em Madrid, com alguns dos seus..., vou dizê-lo, obviamente, amantes, a ausência e o que a acompanha, a espera, tornavam-se insuportáveis para mim. Ela e eu falámos muitas vezes sobre este assunto espinhoso, sobre como havíamos de combatê-lo. Instava-me a fazer o mesmo. Uma espécie de vida paralela, em que eu procurasse amantes femininas ocasionais, mas tal solução, que experimentei, não foi agradável. Se olharmos bem, com olhos de behaviorista, claro, a angústia do ciúme produz-se, sobretudo, devido ao desconhecimento, à necessidade de saber como, inclusivamente em que posições e atitudes estarão, em cada momento preciso, os amantes ausentes. Foi Isabel quem teve a ideia e pô-la em prática não foi difícil, foi o ovo de Colombo. Como sabes, esta casa é grande, boa para jogar às escondidas.

Capablanca levantou-se e convidou-me a segui-lo. Ao fundo do corredor havia um quarto de paredes brancas, com a cama e os restantes móveis da mesma cor. Parecia uma suite nupcial de um hotal de luxo, só que os quadros que adornavam as suas paredes eram autênticos. Um deles, um pastiche moderno, que me pareceu uma coisa insignificante sem muita graça, era composto por recortes de jornais e no centro continha, colado sobre a tela, um espelho de mão em cujos bordos alguém, talvez guatemalteco ou mexicano, pintara em cores vivas sobre a madeira uns desenhos pretensiosamente maias. Capablanca saiu do quarto sem apagar a luz e introduziu-me no do casal, no seu, um pouco maior, que a um canto continha uma porta. Abriu-a. Naquele cubículo, apropriado para um boudoir antigo, havia apenas um cadeirão com umas pernas extraordinariamente altas e, na parede da frente, por baixo de um orifício redondo que ali fora feito e tinha forma de olho de boi, uma pequena prateleira de marcenaria.

- Senta-te nesse cadeirão e apoia os braços no suporte. É para isso que aí está - ordenou-me.

Assim fiz e dali pude comtemplar, através do espelho contido no quadro do outro quarto, aquele quarto branco, em toda a sua amplitude.

- Pode pensar-se que estas práticas são perversas - disse Capablanca - Mas, no meu caso, assenta-lhe melhor o adjectivo terapêuticas. Poder ser mórbido, eu sei, mas por isso mesmo dá-me prazer. Um prazer partilhado com ela que, sabendo-me ali, não perdia uma ocasião de me olhar, de me fazer caretas e enviar mensagens. Traindo-o a ele, mas não a mim. Oculto na escuridão, pertante aquela visão luminosa (ela nunca permitia que a luz estivesse apagada), partilhei o seu gozo e nunca, por muito que fosse a sua paixão, por mais arrabatadores que fossem os seus transportes eróticos, me senti excluído. Os seus gritos de prazer, que talvez pudessem parecer exagerados, chegavam-me com nitidez. Não lhe agradavam oas conversas com outros. Durante aqueles arrebatamentos só saíam da sua boca ordens obscenas e comentários escabrosos. Abandonava a ternura ao atravessar a porta do quarto branco e só a recuperava quando voltava para o meu lado, quando o seu amante, a meio da noite ou ao nascer do dia, partira; ela então aproximava-se da nossa cama e, nua, entrava nela, ao lado do meu corpo, para, ronronando como uma gata, me murmurar ao ouvido, começando sempre pela mesma pergunta: «Foi bom para ti?» E, perante a minha afirmação, concluía, dizendo: «Para mim, também, mas agora preciso de ti».
Era a nota final, o regresso, a recuperação do seu tacto, que eu esperava e nunca me faltou.

Excertos do livro "Infidelidades", de Joaquín Leguina...

14 comentários:

ana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ana disse...

Meu querido amigo Shelyak,que coincidência!!!Ainda um destes dias um amigo bem especial que tenho me falava deste livro e curiosamente de duas passagens que tens aqui publicadas no teu post!!
Pois...este assunto é um tanto ao quanto delicado,isto é,ou seja, nem todos aceitamos as coisas desta forma e tu possivelmente também o saberás!!
Ciume?? Traição?? Preteridos?? São estas as emoções inerentes a este tipo de envolvimentos e isto acontece em grande parte dos casos!!É bastante dificil para a maioria das pessoas aceitar as coisas desta forma!
..."Mas, no meu caso, assenta-lhe melhor o adjectivo terapêuticas. Poder ser mórbido, eu sei, mas por isso mesmo dá-me prazer. Um prazer partilhado com ela que, sabendo-me ali, não perdia uma ocasião de me olhar, de me fazer caretas e enviar mensagens. Traindo-o a ele, mas não a mim..."
Se virmos e analisarmos as coisas por este prisma certamente muitas relações não terminariam!!mas...
..."partilhei o seu gozo e nunca, por muito que fosse a sua paixão, por mais arrabatadores que fossem os seus transportes eróticos, me senti excluído..."
Sabes também que quase todos nós queremos a exclusividade e pouco sabemos da partilha que não seja a simples partilha a dois!!
"...quando o seu amante, a meio da noite ou ao nascer do dia, partira; ela então aproximava-se da nossa cama e, nua, entrava nela, ao lado do meu corpo, para, ronronando como uma gata, me murmurar ao ouvido, começando sempre pela mesma pergunta: «Foi bom para ti?» E, perante a minha afirmação, concluía, dizendo: «Para mim, também, mas agora preciso de ti»..."
Complexo para a maior parte das pessoas sentirem desprendimento de tal forma que consigam e compreendam que o sexo assim partilhado possa realmente dar mais gozo e reforçar toda uma relação!!
Se as coisas fossem assim tão simples e lineares...
Será que a eterna mania que temos em complicar aquilo que na verdade é extremamente simples se aplica neste caso??
Será??hummmmmm...deve ser!
Mais um tema daqueles bem típicos em ti!!o escaldar e o questionar de tanta coisa que quase sempre tentamos esquecer ou mesmo ignorar!!!
SUPERBE!!!!!!!!!

Beijinho bem doce te deixo,:)

Natureza disse...

é preciso ter estômago para aguentar uma situação dessas! são situações muito engraçadas, carregadas de erotismo, mas também muito difíceis!
beijos

Queremos Mais disse...

Essa aprendizagem é a mais difícil de todas...

Anónimo disse...

Há a tendência para se falarem de ciúmes e de exclusividade nas relações amorosas, e o que é giro é que a existência dos primeiros e a ausência dos segundos é associada quase apenas à existência de relações sexuais com terceiros, quando há aspectos nas relações entre as pessoas que são muito mais fortes e arrebatadores e "preocupantes" no que respeita ao medo de se perder alguém, do que sexo... muitas vezes fortuito... que muitas relações destrói por alguma... imaturidade das pessoas envolvidas. Penso eu.

Porque, se a partilha de sexualidade entre duas pessoas (em que um é terceiro ao casal) fosse razão suficiente para abalar e questionar o amor que exista num casal, todas as relações sexuais seriam sinónimo de relações amorosas. E não o são, porque se o amor fosse assim tão fácil de obter e sentir, não tinha graça nem se falava tanto dele, seria algo muito mais banal do que é... Por alguma razão a palavra "sexo" é das mais pesquisadas na Internet, por exemplo... sexo é banal.

Por outro lado, há quem leve muito a sério a vivência da sexualidade, de uma forma muito íntima e como uma espécie de dádiva para quem ama. E por isso mesmo a queira partilhar apenas com mais uma pessoa, pelo menos de cada vez. Nesse caso, o melhor a fazer se tiver um(a) parceiro(a) que o não entenda assim, é que não saiba o que ele faz... porque pode doer. A vivência da verdade será sempre menos importante que a inexistência de sofrimento, sem que isso envolva mentira (sendo apenas omissão).

Que tudo seja objecto de alguma comunicação, entendimento, aceitação mas, acima de tudo, havendo amor... queremos é o que faça o outro feliz, sem chocar com o que queremos para nós.

Fidelidade é nome de aparelho para ouvir música, e adjetivo da relação entre os cães. Do que se deve fazer a vida é de honestidade, saúde, amor, alegria, felicidade, e afins.

Desculpa tão longo comentário :-)

ps: quando amo gosto de exclusividade de amor; o resto é irrelevante. Quem nunca "pecou" ou pensou em, que atire a primeira pedra :-)

Viajante pelos Sentidos disse...

Adorei o post... esse livro parece-me deveras interessante...

Um grande beijinho viajante!

Ai e Tal... disse...

Falar é mais facil do que fazer... A verdade é que cada relação é uma relação independente... Desde que o sentimento seja mutuo não vejo problema!!

***MUAH***

Pekenina disse...

Acho que tudo depende do casal, das vontades e das concordâncias do mesmo. O excerto, no entanto, está fantástico.

Beijinho*

Peach disse...

shelyak

Peço desculpa desta ausencia, mas há dias que tento entrar no teu blog e não consigo. mal entro fica pendurado.

bem, quanto aos ciumes, e o "ninguem é de ninguem", tu sabes que tenho muito a dizer. Por isso volto mais tarde com calma, para te dar a minha opinião

beijos grandes.

lalisca.cs-life disse...

Deixa-me voar que para ti voltarei...prometo!!
beijo

Anónimo disse...

acredito que seja um livro a não perder!

Peach disse...

Bem a nivel sexual, direi que tudo é natural... cada casal faz aquilo que entende dar-lhe mais prazer.

Agora a nivel do coração, não acredito que dividir o parceiro. Jamais aceitaria dividir a pessoa que amo, com outra.

São no entanto duas situações bem distintas.

Marrie disse...

Gostaria imensamente de UM DIA chegar a tal estado de amadurecimento partilhado!
Infelizmente, somos frutos de uma sociedade hipócrita e castrativa dos nossos desejos.
bjs

Luís Galego disse...

por mais ousados que sejamos, temos muita dificuldade em aceitar isso, sobretudo se isso for praticado pelo o outro.