São tantas as vezes que dizemos ou pensamos "Juro que nunca vou esquecer" sempre que somos confrontados com alguma doença grave de alguém que nos é próximo e em que a vida se acaba por extinguir prematuramente... ou com um acidente com consequências idênticas... e depois, o que acontece com estas nossas "juras", tão sentidas na altura, e que se vão desvanescendo à medida que novas recordações nos vão preenchendo este nosso espírito ? simplesmente, esquecemos e voltamos a deixar-nos envolver pelo dia-a-dia, tantas vezes brutal, exponenciando e sofrendo o que nada vale...
Vem isto a propósito das crónicas que tenho lido na Visão, da autoria de António Lobo Antunes, desde que foi internado no hospital, lutando contra a vida e, feliz e aparentemente, com sucesso; esta luta ainda não terminou mas tudo indica que, brevemente, voltará para sua casa com uma tranquilidade que a sua memória tem recordado com muita saudade. Por certo que não vai ser o António Lobo Antunes do passado que vai regressar mas sim um outro, mais amante da vida, mais sensível e mais humano à vertente social da civilização; vai ser um António Lobo Antunes que vai viver, com alegria e tristeza também, cada minuto da sua vida e melhor saber distinguir o importante do não importante; vai desvalorizar as mesquinhices que todos os dias voam sobre nós e dançar com o seu espírito, com a sua alma, sorrir ao ver o sol nascer e estremecer de felicidade por apenas sentir a sua respiração...
Eu não sou adivinho, não... mas as crónicas que tem escrito, cada palavra, cada frase, cada ideia, encontram-se carregadas de emoção e escritas de uma forma simples, em que se adivinha uma nova descoberta da vida. Gosto bastante de ler e confesso que sempre senti alguma dificuldade em acompanhar os seus livros; recordo o último em que avancei, com algum custo, sobre as páginas iniciais - Eu hei-de amar uma pedra - mas que não acabei. Neste caso, tem sido diferente...
Sinto-me obrigado a transcrever aqui a sua última crónica, da semana que passou, pois uma imagem vale por mil palavras e eu não não tenho a arte de desenhar uma imagem tendo como lápis apenas palavras; Lobo Antunes tem...
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Juro que não vou esquecer...
Nunca vou esquecer o olhar da rapariga que espera o tratamento de radioterapia. Sentada numa das cadeiras de plástico, o homem que a acompanha (o pai?) coloca-lhe uma almofada na nuca para ela encostar a cabeça à parede e assim fica, magra, imóvel, calada, com os olhos a gritarem o que ninguém ouve. O homem tira o lenço do bolso, passa-lho devagarinho na cara e os seus olhos gritam também: na sala onde tanta gente aguarda lá fora, algumas vindas de longe, de terras do Alentejo quase na fronteira, desembarcam pessoas de maca, um senhor idoso de fato
completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras.
Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um
tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
completo, botão do colarinho abotoado, sem gravata, a mesma nódoa sempre na manga (a nódoa grita) caminhando devagarinho para o balcão numa dignidade de príncipe. É pobre, vê-se que é pobre, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam, a mão esquelética consegue puxar da algibeira o cartãozinho onde lhe marcam as sessões. Mulheres com lenços a cobrirem a ausência de cabelo, outras de perucas patéticas que não ligam com as feições nem aderem ao crânio, lhes flutuam em torno. E a imensa solidão de todos eles. À entrada do corredor, no espaço entre duas portas, uma africana de óculos chora sem ruído, metendo os polegares por baixo das lentes a secar as pálpebras.
Chora sem ruído e sem um músculo que estremeça sequer, apagando-se a si mesma com o verniz estalado das unhas. Um sujeito de pé com um saco de plástico. Um outro a arrastar uma das pernas. A chuva incessante contra as janelas enormes. Plantas em vasos. Revistas que as pessoas não lêem. E eu, cheio de vergonha de ser eu, a pensar faltam-me duas sessões, eles morrem e eu fico vivo, graças a Deus sofri de uma coisa sem importância, estou aqui para um
tratamento preventivo, dizem-me que me curei, fico vivo, daqui a pouco tudo isto não passou de um pesadelo, uma irrealidade, fico vivo, dentro de mim estas pessoas a doerem-me tanto, fico vivo como, a rapariga de cabeça encostada à parede não vê ninguém, os outros (nós) somos transparentes para ela, toda no interior do seu tormento, o homem poisa-lhe os dedos e ela não sente os dedos, fico vivo de que maneira, como, mudei tanto nestes últimos meses, os meus companheiros dão-me vontade de ajoelhar, não os mereço da mesma forma que eles não merecem isto, que estúpido perguntar
- Porquê ?
que estúpido indignar-me, zango-me com Deus, comigo, com a vida que tive, como pude ser tão desatento, tão arrogante, tão parvo, como pude queixar-me, gostava de ter os joelhos enormes de modo que coubessem no meu colo em vez das cadeiras de plástico
(não são de plástico, outra coisa qualquer, mais confortável, que não tenho tempo agora de pensar no que é)
isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo
(aos quadradinhos, já gasto, já bom para deitar fora)
botão de colarinho abotoado, sem gravata e no entanto a gravata está lá, a gravata está lá, o que interessa a nódoa da manga
(a nódoa grita)
o que interessa que caminhe devagar para o balcão mal podendo consigo, doem-me os dedos da força que faço para escrever, não existe um único osso que não lhe fure a pele, entende-se o sofrimento nos traços impassíveis e não grita com os olhos porque não tem olhos já, tem no lugar deles a mesma pele esverdeada que os ossos furam e me observa por instantes, diga
- António
senhor, por favor diga
- António
chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
no caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo.
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Não vamos esquecer... vamos viver... verdadeiramente... dando importância e preocupando-nos com o que realmente merece...
17 comentários:
Entro aqui inadvertidamente, à procura de uma playlist de que gentilmente me advertes, e saio... saio de coração carregada e garganta apertada... saio, com a imagem de todos estes e de mais alguns que conheci, que me estão no coração, apesar de a terra já os ter levado... saio, com os olhos a quererem, teimosamente, molhar-se...
Vou ligar o som, vou ouvir Roger Waters, que tão generosamente aqui colocaste, mas irei ficar com estas palavras e estas imagens coladas na mente o resto do dia... vou...
Um beijo
Shelyak... na profunda amrgura em que me encontro... estas palavras apenas elevaram a minha dor... desconhecia que o António Lobo Antunes estava doente... deixei de ler as crónicas dele... depois da infeliz crónica sobre o telefone... e a mulher...
Eu sou o tipo de pessoa que anda sempre de bem com a vida... quem me conhece... sabe... vivo o dia como se fosse o último... e ando sempre com um grande sorriso na cara... tenho sempre palavras bonitas para deixar aos que andam mais tristes e se cruzam cmg... nunca transmito os meus problemas... nunca o fiz... recentemente baixei um pouco a muralha que tinha construído À minha volta... e descobri que não o devia ter feito... as pessoas aproveitam-se sempre das nossas fagilidades... mesmo estando triste com a vida... sei que vou voltar a ser a mesma pessoa daqui a pouco... vou continuar a sorrir... e a fazer sorrir quem está por perto... é a minha natureza... apesar da dor que teima em invadir-me... sei ver as coisas bonitas que me rodeiam... por exemplo o gato dos meus pais... sentiu que eu n estava bem e veio melosamente mimar-me... adorei...
Fugi ao assunto do teu post... desculpa... mas escreveste uma bela introdução... digna de muita reflexão...
Uma boa semana... e como o Alexandre diz... Beijinhos!!! Muitos!!!!!
Minhas queridas Nanny e Momentos...
Não era nunca minha intenção provocar-vos mágoa ou tristeza quando aqui partilhei este sentimento e reflexão mas sim uma lembrança para termos presente quando nos deparamos com situações mesquinhas e que nada valem, sendo que tantas vezes as valorizamos exponencialmente ao ponto de nos infligir uma tristeza e descontrolo desnecessários. Diria que, de vez em quando, deveremos dar um passo atrás - esta reflexão algo incómoda com que nos agora deparamos - para depois dar, de seguida, dois passos à frente, com um sorriso nos lábios e uma força acrescida. Verdade que é muito incómodo este passo atrás mas depois podem ser bons os dois seguintes à frente...
Sentimos as recordações más voltaram a assombrar a nossa paz e tranquilidade? sim...é possível, mas temos que viver com a história, não apenas a universal mas também a nossa e as lições que delas retiramos...
No fundo, pretende-se que este post seja um hino à vida...
Sei que não estamos aqui para carpir tristezas... sei... pelo contrário, estamos aqui para soltar as pressões que sentimos no dia-a-dia, para partilhar momentos bons...
Sabem...há dias li, num post de 2 Junho, do Francisco del Mundo, http://diariodeumhomensentimental.blogspot.com, a tristeza que ele sentia ao verificar os blog's que iam sendo fechados de pessoas que ele julgava felizes e agora a sofrer... e talvez, digo eu agora, por situações desnecessárias... talvez esta constatação me tenha ajudado a dar este grito de alerta... se puder ter contibuído nem que seja um pouco, fico feliz...
Como disse na parte final da minha reflexão, vamos viver...
Querido, inteligente, sensível homem....eu sei que olhas as coisas lindas da vida com igual envolvimento e entrega.
Ai, ai.... ;)
Não é preciso Jurar para esquecer...viver o dia a dia com um sorriso ainda que triste ou muito feliz :) Sorrir sempre com surpresas que a vida nos dá mesmo quando tudo parece desaparecer...esperança é o que nos resta e muita alegria por pequenas coisas...afinal a vida é feita de pequenos nadas...
Me
Lembro-me de ter tido, um dia, uma discussão/conversa, no meu local de trabalho, sobre o que era mais importante na vida: se o amor, se a saúde. Naquela altura eu gritei veementemente que era o amor, que não adiantava nada ter saúde sem ter amor. Havia colegas que diziam o contrário. Hoje em dia considero que, com certeza, é mais importante a saúde, porque sem ela o amor servirá de pouco... mas serve sempre de alguma coisa...
Os que estão no "corredor da morte" que o António nos relata têm amor, muito amor. E é isso que sobressai da crónica: que quando morrer(mos), que ao menos estejamos felizes por (se) ser(mos) amados. E que façamos por isso; com muita ou com pouca saúde. É a lição que levo daqui. E desconhecia, também, que o ALA estava doente...
E reparo agora, que entre a saúde e o amor, afinal o meu coração continua a balançar... ;-)
Beijinhos
Minha querida Anani...
Estou convencido que não existe algo do tipo "este é mais importante que aquele"... ambos, penso, têm igual importância e peso para o nosso "eu"... não devemos é perder a nossa tranquilidade valorizando, como tantas vezes acontece, o que não deve ser valorizado...
Quando se está no corredor da morte, como nestes casos, o amor, revolta e desespero colidem numa luta de lágrimas esgotadas e devastadora...
Sabes o que te digo... embora venha e não venha a propósito... apetece-me deixar de fumar...
Um beijinho...
Pois... Não sei se Lobo Antuines irá mudar! Nem sei se quero que Lobo Antunes mude... Ele é assim! Tem qualidades e defeitos. Quando li o livro com as cartas que ele escreveu à ex-mulher constatei que até ele , um homem tido como frio e distante, se perde nas aventuras e desventuras do amor... As crónicas dele, que não tenho acompanhado, parecem com uma sensibilidade diferente. Por isso digo que não sei se o homem mudará, mas o escritor já o fez...
Quanto aos blogs que por ai se fecham, tenho mesmo pena... Dizia-me a bela Nanny que o blog é um reflexo dela mesma... De facto a nossa vida é pincelada com coisas boas e coisas más... E não devemos desistir dela! E nem do blog já que pode servir de testemunho e incentivo a outros...
Abraço
Saio daqui com a lágrimazita no olho,consegui sentir TUDO isto,e é impossível ficar indiferente;uma coisa é certa,eu estou constantemente a dar carinho aos que mais precisam,todas estas pessoas me falam directamente ao coração...
Belo texto
Atrevo-me a fazer um daqueles comentários que o próprio Lobo Antunes trataria de trucidar :) O escritor da "Memória de Elefante", dos "Cus de Judas", da "Exortação aos Crocodilos" não é o homem das crónicas rabiscadas e sentidas em bocados de papel. Felizmente.
Gostei do teu blog. Muito! Serei leitora assídua.
beijinho
Obrigada pelo simpático comentário no meu blog..visito o teu com alguma regularidade mas o tempo que tenho para estes vagueios é sempre tão curto que acabo por ler sem comentar. Um grande beijo
Shelyak
Eu já deixei! Há 5 anos e há, pelo menos, outros tantos quilos atrás ;-) Mas valeu muito a pena, por todas as razões (mesmo TODAS ;-)).
Beijos
Espero que tenhas gostado do meu Mundo ...;)
Bjo NaTuaBoca *****
Viva,
fiz um print do teu texto para ler com atenção!
Quanto aos Sheiks, aqui fica em primeira mão: eles vão reunir-se em Setembro para um espectáculo único, disse-me o Paulo de Carvalho! Era uma boa oportunidade de combinarmos e irmos ver. Ainda não sei onde vai ser mas até ainda saberemos!
Em princípio tenho o essencial deles, mas como gostas de música portuguesa também, temos que fazer um intercâmbio um dia destes! Eu estou a fazer uma lista de tudo o que tenho em CD, já são uns milhares de CDs, preciso de organizà-los e, álbuns!
Um abração!!!
Alexandre...combinadíssimo! Esse concerto, sem dúvida, vai ser único!
Quanto a esses kilos e kilos de cd's, organizo-os de forma diferente: passo os cd's todos para mp3 e, juntamente com o que vou buscar à net, coloco-os numa directoria única com sub-directorias; porque o espaço necessário assim se torna grande e como precaução também, tenho um disco rígido externo que serve de base. Desta forma, torna-se mais fácil ir ouvindo o que queremos para além de se ter a facilicade de construirmos as nossas playlists. Verdade que a qualidade pode não ser tão boa como em cd mas, para a conseguir distinguir, é preciso um grande ouvido, estar "in the mood" e um equipamento sonoro impecável. Diria que 128 kb/s já não será mau.
Abração para ti em dobro, se possível :)
Olá, o teu texto está magnífico e concordo contigo - devemo-nos preocupar com o que realmente merece.
Perdemos tempo com coisas que são tão insignificantes... Contra mim, falo, pois tive que mudar de atitude em relação a muito coisa a que não ligava e que agora valorizo. Foi preciso adoecer e gravemente para aprender isso.
Obrigada pela partilha, pela visita ao blog, sempre apreciada.
Até já
Beijos e abraços
Marta
O primeiro livro q li de Lobo Antunes foi aquele em q estao compiladas as cartas q ele escrever à mulher enqt estava na guerra colonial. dp de as ler, n há cm n gostar da sua escrita. eu gosto. é dificil,é. ler Memoria de Elefante foi uma "corrida" complicada, mas csgui terminar. esta doença irá mudá-lo, isso é obvio. mas, de certeza, q será para melhor. nc faço promessas nem juras, nao gosto, nem quero q mas façam, acho q qd nos acontece algo pensamos q temos de dar mais valor à vida, a nós, àqueles q amamos, sim, podemos dp até "esquecer", mas no íntimo nao, pq essas mudanças sao profundas, nao apenas à superficie... bj
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